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Retrato da vida contemporânea

(Baseado em uma ocorrência policial)

Mateus não viveu. Segundo filho do casal Raul e Márcia, que residia no litoral, com apenas um ano de idade, sem entender direito, presenciou a separação dos pais. Na verdade, cansada das agressões do marido, Márcia arranjou outro, um traficante, que lhe jurou amor e proteção.

Raul ficou furioso, jurou que mataria, mas ao conhecer a ficha do concorrente preferiu ser cauteloso. Na primeira oportunidade caguetou-o a polícia. Dois meses depois Raul estava vingado, pois o outro estava na cadeia.

Tentou se reconciliar com Márcia, mas foi rejeitado. Deu-lhe uma tremenda surra e se mudou pra capital. Consigo levou as crianças. Ela, por sua vez, seguiu o caminho do novo companheiro. Pelo mesmo motivo, venda ambulante, de maconha, acabou no presídio.

Não tardou e Raul conheceu Neuza, já com três filhos, ex-mulher de um assaltante, morto pela polícia. Juntaram os cacarecos e foram morar juntos, num barraco na periferia.

Nessa época Raul arranjou emprego em uma montadora de automóveis. Enquanto trabalhava Neuza ficava com as crianças. Mateus era discriminado. Enquanto os outros comiam ele chupava o dedo. O seu irmão, três anos mais velho, ainda conseguia se defender. Ele não. O jeito era comer o resto dos outros, quando sobrava, disputando com os cachorros e gatos, lá no quintal.

As surras também faziam parte da rotina de Mateus, pois a madrasta era sádica. O seu passatempo era bater no indefeso menino, que sequer sabia falar, pois tinha apenas dois anos de idade. Quando o marido chegava, ela inventava fofocas sobre o garoto, provocando a ira do pai, que, a exemplo de Neuza, também tinha instinto animal.

Assim, tal qual um bicho selvagem, no meio de feras, Mateus seguia o seu destino. Pra complicar ainda mais o seu lado a madastra engravidou. Logo chegou outro menino, somando-se aos demais. Agora, além de Mateus, havia mais seis crianças em casa.

Devido as fofocas da esposa o pai criou uma ojeriza inexplicável do filho e, sem que ninguém entende-se o porquê, passou a espanca-lo freqüentemente, sem motivos. A vida daquele anjo era um horror. De dia apanhava da madastra. À noite era a vez do pai bater. As marcas dos espancamentos eram cada vez mais evidentes. Desde queimaduras, hematomas, marcas de unhas, etc. 

Um dia o conselho tutelar foi chamado e Mateus foi levado. Quinze dias depois, por ordem do juiz, era devolvido a família. Foi bem tratado durante uma semana. Depois a rotina se restabeleceu.

Durante uma tarde, enquanto Raul trabalhva, Neuza fez um bolo. Deu um pedaço para cada filho, menos pro Mateus. O seu irmão se compadeceu e dividiu o pedaço com ele. Neuza, ao perceber, bateu na criança com o chinelo, com a vassoura, com as mãos e, pra finalizar, jogou água gelada no menino.

Quando o marido chegou acusou Mateus de ter furtado o bolo, e disse que ele tinha se molhado no tanque, brincando. Nova surra.

À noite, Mateus tossiu. Neuza, com a consciência pesada, fez menção de se levantar para medica-lo. O pai não deixou. Medicou o pequeno a sua maneira. Com vários socos e safanões. O menino não mais tossiu. Amanheceu com uma mancha no rosto e com dores no peito, nos braços e nas pernas. Comer não conseguiu. A dor era intensa.

A criança sequer foi levada ao médico. Dois dias se passaram e num feriado, à tarde, o pai entrou em casa nervoso, após beber umas canas e perder dinheiro no jogo de baralho, no bar da esquina. Neuza, ao perceber que o marido estava alterado, com medo de sobrar para ela também, disse que o menino se recusava a comer e não queria se levantar. A ira do pai foi dirigida ao pobre anjo.

Raul  tentou erguer o menino, a força, e obriga-lo a comer. Mateus se levantou, mas não conseguiu comer. Estava com a mandíbula quebrada. Irritado, Raul agrediu violentamente a criança com tapas no rosto, socos no peito e jogou-a no chão, com violência, como se fosse uma bola. Depois de dar a derradeira surra no filho foi pro quarto.

Neuza, que a tudo assistiu, para não ter que limpar o sangue que escorria no chão, empurrou o menor para baixo do chuveiro. Mateus agoniza. Mal conseguia chorar. Ela, temendo as conseqüências, desesperou-se. Mandou que o marido procurasse ajuda. Ele, muito contra a vontade, pouco se importando, lentamente dirigiu-se ao vizinho, que possuía carro.

Uma hora depois, enrolado em um lençol Mateus entrou no pronto socorro carregado pelo próprio pai, mas já era tarde. Enfermeiros e médicos nada puderam fazer senão lamentar e chamar a polícia. A alma de Mateus foi para o céu, seu corpo para o IML, onde, pela manhã, em meio a revolta de populares, aguardava alguém para sepulta-lo.

A mãe e o pai não compareceram ao velório. Amanheceram na nova morada, o xilindró, onde deverão passar os próximos anos, e viraram notícia de primeira página.

Por Dr. Valmir Jorge Comerlatto

Advogado, com Graduação em Direito pela UNICURITIBA (2007), Especialização em Direito Público pela UNIBRASIL (2008), fez a Escola da Magistratura Federal do Paraná (2010); é Graduado, ainda, no Curso de Formação de Oficiais pela APMG (1994), em Letras pela FAFIPAR (2000); e fez Especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela FAFIPAR (2001).
e-mail: valmir@comerlatto.adv.br whatsapp: 41 9 9793-3000

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