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O Assalariado

André era jovem. De origem humilde, batalhador, durante anos se esforçou, trabalhando de graça, para tornar-se marceneiro e, finalmente, conseguir aquele emprego, o primeiro de sua vida com carteira assinada. O salário não era dos melhores. Mas com um pouco de sacrifício dava pra viver. Enquanto os outros reclamavam do chefe, das ferramentas, do serviço e da carga horária, ele se orgulhava por ser um trabalhador honesto. Vivia para o patrão. Após cinco anos naquela empresa, não tivera uma única falta, tampouco atraso. Chuva ou sol, frio ou calor, lá estava ele. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Sem dúvida era um empregado exemplar, íntegro, digno de recompensa.

E esta veio. Foi no início do sexto ano de trabalho. Ele, apesar de ter sido um dos poucos contemplados, não denotou orgulho. Limitou-se a sorrir, em gesto de gratidão. O merecido prêmio foi à redução de quinze por cento do seu salário.

No dia seguinte André se mudou para um quarto de pensão, mais distante do centro da cidade, pois com a redução do salário poderia pagar um aluguel mais baixo e morar num lugar mais humilde.

Para chegar ao trabalho passou a tomar duas conduções. E isso o deixava satisfeito. Agora ele tinha um bom pretexto para levantar mais cedo. Conseqüentemente a sua disposição aumentava. Assim, continuou durante três anos, quando o chefe chamou-o novamente para lhe dar a boa notícia: o segundo corte salarial.

– Desta vez a empresa atravessa um período excelente, explicou-lhe o patrão. Por isso a redução será um pouco maior. Vinte por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança. Agora André passou a acordar às cinco horas da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele se tornou menos rosada. O contentamento aumentou e a luta prosseguiu.

Nos quatro anos seguintes, porém, nada de extraordinário aconteceu. Ele se preocupava. Perdia o sono, intrigado, sobretudo com colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diária. Um dia, quase no final do expediente foi chamado ao escritório principal. Respirou acelerado, com o coração descompassado.

– Seu André! Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor, interpelou o patrão.

Ele, em sinal de abnegação e modéstia, baixou a cabeça, curvando levemente o corpo esguio, com as mãos para trás.

– Sabemos de todos os seus esforços. E o nosso desejo é dar-lhe uma prova real de nosso reconhecimento.

André respirou fundo, aliviado, e o coração desacelerou.

– Além de uma redução de quinze por cento em seu salário, decidimos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

Deslumbrado com a revelação ele sorriu.

– De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de produção, com apenas dez dias de férias. Contente?

Radiante, resmungou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria e voltou ao trabalho. Naquela noite, André não pensou em nada. Apenas dormiu. No gelado silêncio do subúrbio.

No dia seguinte, entretanto, mudou-se mais uma vez. Para o albergue. Também deixou de jantar. O almoço passou a ser um sanduíche. Assim, emagreceu ainda mais, passou a sentir-se mais leve, ágil. Não mais havia necessidade de tanta roupa. Afinal, não havia mais passeios, nem cinema, nem missa. Certas despesas inúteis, como lavanderia e refrigerante, foram abolidas.

Passou a chegar em casa as onze e meia da noite. A alvorada passou a ser as três da madrugada. Para ir ao trabalho apanhava agora um trem e dois ônibus. O restante do percurso, cerca de cinco quilômetros, fazia a pé. Mesmo assim continuou chegando cedo. E a vida foi passando, passando, com novos prêmios.

Ao completar sessenta anos de idade, o seu salário já equivalia a dois por cento do inicial. O organismo se acostumara à fome. Todavia, de vez em quando saboreava alguma raiz das estradas, ou resto de comida encontrada nas latas de lixo. Dormia apenas quinze minutos por dia. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Residia debaixo de uma ponte, entre o agradável som dos veículos, aquecido com os farrapos de um velho cobertor, adquirido há muitos anos. O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um caminhão, anônimo, transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi novamente convocado pela chefia.

– Seu André. Eliminamos o seu salário. Não haverá mais férias e sua função, a partir de amanhã, será de limpador de sanitários.

O seu crânio se comprimiu, do olho amarelado escorreu um líquido tênue, o corpo ficou trêmulo, mas ele não pronunciou palavra. Sentia-se cansado, mas aliviado. Afinal, alcançara a todos os objetivos. Em seguida tentou sorrir. Olhando para o chefe, então, falou:

– Agradeço, senhor, por tudo o que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe ficou indignado. Não entendeu o porquê. Logo agora, que André estava sem salário, e dentro de poucos meses teria que pagar a taxa inicial para permanecer nos quadros da empresa pretendia ele desprezar tudo isso? Não, não achava justo.

– Não, seu André. Realmente não entendo. São quarenta anos de convívio e o senhor ainda está forte. Sinceramente!!?

Não houve resposta. A emoção impediu. André se afastou, o lábio murcho se estendeu, a pele enrijeceu e ficou lisa. A estatura diminuiu, a cabeça, as pernas e os braços se fundiram ao corpo, as formas se desumanizaram, ficaram planas, compactas. Nos lados surgiram quatro quinas. O seu corpo enfim tomou a forma retangular. Suas costelas viraram gavetas, de pastas suspensas, e o seu ex-nariz virou uma fechadura.

André se transformou num armário.

Por Dr. Valmir Jorge Comerlatto

Advogado, com Graduação em Direito pela UNICURITIBA (2007), Especialização em Direito Público pela UNIBRASIL (2008), fez a Escola da Magistratura Federal do Paraná (2010); é Graduado, ainda, no Curso de Formação de Oficiais pela APMG (1994), em Letras pela FAFIPAR (2000); e fez Especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela FAFIPAR (2001).
e-mail: valmir@comerlatto.adv.br whatsapp: 41 9 9793-3000

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